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Em meio a debates, 99 e Uber mototáxi em SP

Especialistas veem risco de mais acidentes e congestionamentos, além de perda de passageiros nos ônibus, mas reconhecem demanda do serviço nas periferias. Empresas de transporte dizem oferecer condições de segurança para passageiros e motociclistas

Por Caio Possati – editada por Mariana Collini em 25/01/2025

As empresas de mobilidade 99 e Uber passaram a operar neste mês serviços de transporte de passageiros em motocicletas na cidade de São Paulo, apesar de um decreto da Prefeitura vetar a modalidade desde janeiro de 2023. A gestão Ricardo Nunes (MDB) tentou barrar a oferta na Justiça, mas não teve o pedido atendido.

As plataformas afirmam que a atividade é respaldada por lei federal e decisões judiciais que apontam o município como responsável apenas por regulamentar o serviço, mas não com direito de proibi-lo.

Para especialistas ouvidos pelo Estadão, a consolidação do mototáxi deve causar mais acidentes – a capital registrou no ano passado o maior número de mortes no trânsito desde 2016. As empresas, por sua vez, negam que haverá alta de sinistros (leia mais abaixo).

Além disso, há risco de fuga de passageiros do transporte público, que já tem visto redução de demanda, e de piora nos congestionamentos, pois parte dos usuários de ônibus vai migrar para as motos.

Por outro lado, é reconhecida a demanda por esse tipo de serviço, sobretudo nas periferias, onde há queixas relativas à cobertura das linhas de ônibus – a Prefeitura diz atender todas as regiões.

99 e Uber dizem que, por ora, a modalidade é oferecida apenas fora do centro expandido. Mas um eventual sucesso do mototáxi pode ampliar esse perímetro de trajetos. Diante disso, os analistas veem como inevitável o poder público dialogar com as empresas e os motoqueiros para criar uma regulamentação.

Trânsito mais violento?

Segundo a gestão Nunes, a proibição se baseou na alta de mortes de motociclistas entre 2023 (403 óbitos) e o ano seguinte (483), “mesmo com a Faixa Azul e outras medidas de segurança”, por conta também do aumento da frota de motos na cidade, que cresceu 35% em 10 anos.

A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as empresas do setor, afirma ser “infundada” a ideia de que os aplicativos são responsáveis pela alta de acidentes. Acrescenta que os 800 mil motociclistas cadastrados nas empresas associadas à Amobitec representam só 2,3% da frota nacional e diz que 100% desses condutores têm Carteira Nacional de Habilitação e documentação regular dos veículos.

Kurt André Pereira Amann, professor de Engenharia Civil da FEI, estima que os acidentes possam até dobrar. “Uma coisa é ter só motorista; outra é ter um garupa também”. Das 1.031 vítimas do trânsito na capital no ano passado, quase metade (46,8%) estava em motos.

Para ele, a ameaça se estende para pedestres, que podem ser atropelados por motociclistas que furam o semáforo vermelho para ganhar tempo.

A 99 diz prestar serviço seguro, com taxa de acidentes de 0,0003% entre suas viagens. Em caso de acidentes, continua, passageiros e condutores têm cobertura de até R$100 mil. A Uber afirma seguir a posição da Amobitec.

O comportamento de risco de grande parte dos motoqueiros – sobretudo os de apps de entrega – também acende o alerta. “Já se nota impaciência do motociclista ao ver uma moto um pouco mais devagar: não quer passar só por cima dos carros, mas do colega um pouco mais lento no corredor. Isso vai se multiplicar”, diz Amann.

Para André Porto, diretor executivo da Amobitec, a tecnologia é aliada. “Se a atividade é feita por intermédio dos apps, as rotas são calculadas com base na velocidade da via.” Não há estímulo, segundo ele, para exceder a velocidade. A 99 diz bloquear motoristas com comportamento inadequado.

A Prefeitura diz ter acionado o Ministério Público Federal para investigar eventual desrespeito à segurança dos trabalhadores.

Apps miram público das periferias

O desafio, porém, é que o mototáxi mira uma população que vive nas periferias, longe das estações de trem e metrô, e depende majoritariamente dos ônibus. Embora seguros, os coletivos são mais lentos, muitas vezes lotados, e exigem baldeações.

“O passageiro está diante de escolha de Sofia: o modal mais perigoso ou aquele que é menos confortável e consome a vida?”, questiona. “O ônibus pode ter sete passageiros por metro quadrado. Demora, atrasa, e a pessoa ainda pode ser assaltada no ponto”, afirma Sergio Ejzenberg, engenheiro e mestre em Transporte pela USP. “Há casos em que se leva 2,5 horas do trabalho para casa. De moto, isso pode levar menos de uma hora”.

Em nota, a Prefeitura informa que o sistema de ônibus atende 4,7 mil quilômetros de vias, com frota de 12 mil veículos, chegando aos locais distantes e permitindo a integração com os trens e metrôs.

André Porto, diretor executivo da Amobitec, destaca também a demanda das mulheres, que se veem vulneráveis a assaltos ou abusos sexuais quando estão no ponto de ônibus ou caminham na rua à noite, e de renda, para um público sem emprego formal. A 99 contabiliza 15 mil motoqueiros cadastrados para o transporte de passageiros desde o último dia 14.

Além disso, em alguns bairros periféricos, o mototáxi já era realidade antes de Uber e 99, com oferta de serviços clandestinos.

Mais congestionamento, menos passageiros nos ônibus

Se o transporte público de fato perder passageiros para o mototáxi, isso impõe nova dor de cabeça para o poder público, que tem visto redução de passageiros desde a pandemia. Entre 2019, último ano antes da covid, e 2024, a média diária de usuários nos ônibus paulistanos caiu 18,4% – redução de 7,2 milhões para 5,9 milhões.

Os fatores por trás disso ainda são estudados, mas transformações sociais e econômicas – como trabalho remoto, comércio eletrônico e aulas a distância – ajudam a explicar a queda. O transporte por aplicativo, há pouco mais de uma década em São Paulo, também influencia.

Essa perda de passageiros também traz desafios extras para o equilíbrio financeiro do sistema, que tem demandado cada vez mais subsídios da Prefeitura para as empresas de transporte para continuar em funcionamento.

Outro efeito colateral são congestionamentos maiores, diante do maior número de motocicletas nas ruas – sobretudo nas faixas de ônibus, que deveriam servir para tornar o transporte público mais rápido. “Imagine se 70 deixarem de pegar um ônibus e optarem pelo aplicativo. Isso significa mais 70 motos na rua”, ressalta Amann.

O que fazer a partir de agora?

Ejzenberg também considera que, por conta da adesão popular, é um erro a Prefeitura ignorar o problema e descartar a regulamentação.

“A Prefeitura vai ganhar essa batalha? Já está perdida”, diz. “A Prefeitura tem que sentar com as empresas e avaliar isso de forma que seja menos mortal. Já que o sistema de transporte é ruim, o mototáxi terá espaço. Precisamos fazer de forma que mate menos”, continua.

Nina Desgranges, pesquisadora do Instituto Tecnologia e Sociedade Rio, concorda. Para ela, a experiência da Prefeitura com a Uber há dez anos, quando a empresa conseguiu implementar o serviço na cidade apesar da oposição dos taxistas, ilustra essa dificuldade. O 99 Moto, por exemplo, já está em cerca de 3,3 mil municípios.

Um novo decreto poderia, segundo ela, trazer “exigências de segurança, regulamentação dos motoristas e áreas permitidas de operação, reforçando a posição da Prefeitura sem necessariamente proibir o serviço”.

Para os especialistas, seria importante estabelecer com os aplicativos exigências obrigatórias ao mototaxista, como exame psicotécnico, qualificação, treinamentos específicos, regras de higienização e direção defensiva. A profissionalização do serviço é um caminho. “Não um motorista qualquer”, propõe Amann.

Outra medida seria aplicar penalidades ao mototaxista quando o percurso for feito em tempo muito inferior ao previsto pelo app. “Se alguém começa a trabalhar e apresentar tempos de percurso incompatíveis, o que pode ser facilitado pela falta de radares e fiscalização na periferia, o motociclista deve tomar “gancho” de uma hora, de um dia”, sugere Ejzenberg.

Os especialistas também citam outras propostas:

Cobrar das empresas uma taxa pelo uso do serviço, como forma de compensar a perda de passageiros nos ônibus;

Ampliar o número de faixas de espera nos semáforos próprias para as motocicletas – tem custo baixo e de fácil implementação;

Tirar dos motociclistas o privilégio de usar os corredores de ônibus, para que não acelerem e trafeguem em maior segurança;

Restrição geográfica de trajeto (só funcionar em alguns bairros periféricos, por exemplo);

Ser um modal complementar ao dos transportes públicos, sendo usado para levar pessoas de casa até estações de metrô, trem e pontos de ônibus.

E Ejzenberg defende, além disso, melhorar a qualidade do transporte público, incluindo aumento de frotas e de corredores de ônibus, para que sejam mais atraentes para os cidadãos. A Prefeitura informa ter criado 54 quilômetros de faixas exclusivas de ônibus desde 2021, além do transporte hidroviário Aquático-SP e o Programa Domingão Tarifa Zero.

Foto: Tiago Queiroz/Estadão

 

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