A pesquisadora, doutora em Geografia e pós-doutora em Arquitetura e Urbanismo, Daniela Abritta Cota, conceitua a mobilidade urbana como algo mais profundo do que o modo como as pessoas se locomovem. Para ela, a escolha por um tipo de deslocamento é marcada por uma série de reflexões que representam diferentes realidades sociais, políticas, econômicas, de gênero e saúde.
A decisão, por exemplo, de usar um aplicativo de carona em vez de andar por uma rua mal iluminada, ou de recusar enfrentar o transporte público em determinados horários demonstram as dificuldades que parcelas da população sofrem mais que outras.
Novas pesquisas vêm demonstrando que, seja em países desenvolvidos da Europa, seja nas grandes cidades do Brasil, uma realidade se repete: a cidade pensada para os carros exclui as mulheres.
Menos mulheres são proprietárias de veículos, elas tendem a andar mais a pé e usar mais o transporte coletivo do que os homens, assim elas são o alvo do sucateamento da mobilidade urbana quando ocorre um contínuo investimento em soluções que só consideram os carros.
Insegurança no transporte
As mulheres são maioria nos transportes públicos e não estão seguras, sofrem com a falta de manutenção dos veículos, maior gasto de tempo e situações de assédio.
Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) de 2020 mostra que 43% das mulheres entrevistadas já sofreu algum tipo de abuso no transporte público de São Paulo.
Leia mais:
Mulheres são as mais afetadas por crise no transporte público – Summit Mobilidade
Mobilidade urbana: mulher deve estar no centro desse debate – Summit Mobilidade
Por que mulheres são minoria entre ciclistas? – Summit Mobilidade
O assédio é mais comum nos horários de pico, quando a mulher está no meio de muita gente. Outra pesquisa da Younder, com dados do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva Instituto de Pesquisa, foi mais criteriosa e incluiu a importunação como cantadas e olhares insistentes como formas de assédio, nesse caso 97% das brasileiras acima de 18 anos já vivenciou alguma experiência dessas em transporte público, aplicativos ou táxis.
Com isso não é de se admirar o dado de que, enquanto a maioria dos entrevistados homens afirma que mantém um carro para poder controlar melhor seus horários, as mulheres têm como maior objetivo garantir a privacidade e a segurança.
Investimento para poucos
Pesquisas mostram que em grandes metrópoles, como São Paulo, os carros resolvem 30,9% dos deslocamentos na cidade, o restante da população se locomove pelo transporte público, a pé ou de bicicleta. Apesar disso, as grandes obras da cidade são constantemente feitas para as vias de veículos, comportamento que se repetiu na maioria das grandes cidades do mundo por muito tempo.
Algumas cidades da Europa tentam agora redesenhar sua estrutura de mobilidade em face dos novos acontecimentos climáticos e começaram a perceber como a desigualdade de gênero afeta a mobilidade.
Após as pesquisas, demonstrou-se que nas principais cidades de vários países europeus os homens utilizam mais os carros, se deslocam por maiores distâncias e usam mais as bicicletas, enquanto as mulheres têm maior probabilidade de andar, pegar o transporte público e realizar vários pequenos trajetos.
Gênero e mobilidade
O gênero não influencia apenas na escolha de modais, mas também em toda a relação dos deslocamentos e da ocupação da cidade. Em Oslo, capital da Noruega, foram instalados estações para o compartilhamento de bicicletas em áreas centrais com muitos escritórios de trabalho e o perfil dos usuários era majoritariamente de homens. Quando as estações chegaram a áreas residenciais os números começaram a se igualar.
Isso trouxe à discussão a especificidade dos deslocamentos das mulheres, que muitas vezes acumulam além das funções de seu emprego, o trabalho doméstico e o cuidado de outros, como o transporte de crianças para a escola. Por isso realizam mais deslocamentos e utilizam diferentes modais.
Trazer esses elementos para o debate é uma forma de tentar diminuir as desigualdades que o machismo e o patriarcado impingiram ao modo como as mulheres utilizam a cidades. O cerceamento de liberdades pode não ser direto, mas se propaga à medida que o sistema reproduz comportamentos e soluções que não consideram a realidade da população.
Fonte: Mobilize, Mobilidade Estadão, Automotive Bussines, Younder, UFPE, ANPUR, EBC.