Conheça o maior evento de mobilidade urbana do Brasil
Metrópoles de todo o mundo enfrentam uma série de problemas similares, são eles: grandes fluxos de pessoas que se deslocam em movimentos pendulares nas horas de rush; populações mais pobres são afastadas dos centros e têm o acesso à cidade dificultado; populações tradicionais são removidas de pontos que se valorizam. Mesmo os municípios planejados sofrem mediante contradições sociais.
Para entender melhor essa dinâmica, conversamos com Marlos Hardt, doutor em Gestão Urbana e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). A seguir, compreenda até que ponto o planejamento urbano pode prever fenômenos sociais.
Cidades são fenômenos sociais
Pensar as cidades e os fenômenos urbanos é refletir sobre as relações sociais, segundo Hardt. Isso ajuda a entender por que até mesmo cidades planejadas, pensadas para uma convivência social mais igualitária, acabam sofrendo problemas inerentes ao capitalismo.
É o caso de Brasília (DF). A cidade foi planejada de forma sistemática, com superquadras que permitissem às moradias serem similares. Na prática, ao longo dos anos, as populações mais pobres foram se afastando para as cidades-satélites, e as extensas ruas se tornaram um problema para quem não tinha carro.
Cidade planejada vs. cidade vivida
Por isso, segundo o professor, as cidades planejadas ou até os projetos para recuperar diferentes pontos tendem a falhar se não considerarem fenômenos urbanos que podem e devem ocorrer dentro de uma lógica de ocupação capitalista do espaço.
As cidades projetadas foram moda durante o período do modernismo, com a ideia de que os projetos poderiam moldá-las. Para Hardt, porém, essa ideia já mudou hoje. Há uma consciência quase unânime entre os urbanistas de que as dinâmicas sociais são mais fortes do que o espaço construído. “Jan Gehl, afirma que ‘primeiro moldamos a cidade, depois a cidade nos molda’”, menciona o especialista.
Os fenômenos urbanos podem sim ser influenciados diretamente pelo espaço construído. As relações sociais, no entanto, criam constantemente novos fatos e movimentos que escapam de ideais planejados. Por isso, uma cidade planejada não pode descobrir antecipadamente as demandas que a vivência vai impor com o tempo.
Um exemplo é o caso de Goiânia (GO). A cidade foi planejada na década de 1940 para impressionantes 50 mil habitantes. Em menos de três décadas, a população já era três vezes maior do que o previsto. Atualmente, já são mais de 1,3 milhão de pessoas.
Cidade igualitária vs. cidade para todos
Portanto, criar cidades igualitárias é uma utopia que tende a causar problemas, na visão do especialista. “Uma cidade igualitária é muito difícil de ser alcançada. As pessoas não são iguais. O que precisa ser criada é uma cidade para todos, que gere condições para todos estarem incluídos, com a possibilidade de, dentro dos seus desejos, alcançarem seus anseios nesses espaços”, afirma o professor.
Com isso, seja na questão social, seja para a própria mobilidade urbana, é preciso entender e prever a diversidade existente nas cidades e utilizar ferramentas para mitigar as diferenças sociais. Dessa forma, diferentes classes sociais teriam a possibilidade de experimentar e acessar a cidade de modo mais democrático.
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Como fazer as cidades para todos?
Existem mecanismos postos em prática em algumas cidades para combater os efeitos da gentrificação e da especulação imobiliária, garantindo a possibilidade de diversas classes sociais terem acesso a pontos que se valorizem com o tempo. Entre eles estão ferramentas como:
- Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo, que impede o avanço da especulação imobiliária predatória;
- leis para garantir a função social das propriedades;
- leis que garantam as fachadas ativas em determinadas zonas;
- IPTU e aluguel social.
Algumas dessas soluções já anteciparam outras que são louvadas pelas discussões atuais da mobilidade urbana. A obrigatoriedade de fachadas ativas, por exemplo, faz que surjam diversos centros comerciais nas cidades, aumentando a oferta de serviços e de empregos, possibilitando que as pessoas façam mais atividades se deslocando menos. Isso é uma das premissas do conceito de cidade de 15 minutos, tão em voga nas discussões atuais.
Segundo Hardt, Curitiba foi pioneira nesse sentido, quando criou leis que obrigavam a determinadas avenidas seguirem essas diretrizes. Além disso, a cidade criou as Ruas da Cidadania, centrais que oferecem serviços do governo — como a realização do Registro Geral (RG) — próximo aos terminais de ônibus. Assim, o Estado oferece serviços mais perto das periferias e fez que as pessoas possam evitar longos deslocamentos para resolver problemas cotidianos.
Para que as medidas sejam efetivas, é preciso também que a iniciativa privada “entre nesse jogo” e tenha incentivos para oferecer serviços em diferentes zonas, ajudando a descentralizar as cidades.
A solução para muitos problemas de mobilidade urbana passa por fazer que as pessoas consigam resolver a maior das suas atividades em deslocamentos de até 15 minutos de casa.
Dessa maneira, Hardt afirma que um modo de criar essas cidades de 15 minutos é o que muitas experiências de Transit-Oriented Development (TOD) têm feito mundialmente.
A ideia é orientar o desenvolvimento urbano pelos meios de transporte, permitindo uma maior densidade populacional perto de estações de transporte público e uma menor, longe delas. Isso ajuda a criar pequenos centros distribuídos ao longo da cidade.
Mobilidade urbana para quem?
O pesquisador alerta também para o risco de algumas soluções da moda na mobilidade urbana não serem efetivas ou até criarem efeitos diferentes do esperado. É o caso do pedágio urbano, criado com o intuito de diminuir a circulação de veículos em determinadas áreas, principalmente nos centros das cidades.
A medida tende a acabar criando mais diferenciação social, já que os ricos podem facilmente pagar pelo privilégio de circular onde quiserem, enquanto o resto da população pode ficar obrigada a usar meios de transporte menos atrativos.
Nesse sentido, uma solução mais democrática, e até mais efetiva, seria banir os veículos de determinadas zonas, como já fazem algumas cidades europeias, como Paris.
Para Hardt, um dos grandes problemas da mobilidade urbana e do planejamento de cidade é que muitas pessoas pensam apenas em diferentes “caixinhas”. Então, uma solução para algum problema ambiental desconsidera a realidade social, e vice-versa.
Algumas pessoas só pensam em ocupação e uso de solo; outras apenas em mobilidade. Para ele, enxergar a cidade como um campo da experiência humana é fundamental para que as soluções de mobilidade não se tornem meras soluções de nicho, voltadas somente a determinada parte da população.
“Se a gente quer resolver o problema da mobilidade urbana, uma pessoa, seja ela quem for, não pode passar duas ou três horas dentro de um ônibus, metrô ou trem para se deslocar de casa até o trabalho. Soluções como bicicletas e scooters compartilhadas são soluções importadas. Precisamos achar o nosso meio de dar soluções finais de mobilidade para todos”, finaliza o professor.
Fonte: Marlos Hardt, doutor em Gestão Urbana e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Viva Urba; Planet Smartcity; UFEGS; Courb; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); FIA; Archademy.