Fenômeno de afastamento de pessoas mais pobres das regiões centrais se repete nas cidades brasileiras
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A vida no Castelo Rá-tim-bum não era fácil: o Doutor Abobrinha perseguia os moradores do local para comprar o terreno e construir ali um prédio de cem andares. E não tem nada de infantil nesse assunto, a disputa do solo atravessa a paisagem urbana e joga para as regiões periféricas as pessoas mais pobres.
Esse movimento centrífugo se repete em todo o País, e o Estadão Summit Mobilidade mostra, aqui, três casos conhecidos e documentados do urbanismo brasileiro para você entender mais da realidade das grandes cidades. Confira!
O centro de São Paulo é um dos territórios urbanos com o solo mais disputado. E, como é de se esperar, as pessoas mais pobres são pressionadas a se deslocarem para as regiões mais distantes, mesmo que haja um vácuo de ocupação dos prédios centrais.
Esse movimento é reflexo da especulação imobiliária e do aumento do custo de vida. A soma desses fatores é um convite quase definitivo a uma transformação da cidade, cujas exceções se tornam icônicas.
Um exemplo clássico dessa relação — parecido com a trama do Castelo Rá-tim-bum, inclusive — é o que ocorre com o Teatro Oficina. Sob direção do dramaturgo e diretor Zé Celso Martinez, o espaço é pressionado pelo empresário e apresentador Silvio Santos, que deseja construir três torres na região. Os defensores do teatro, por sua vez, acusam Santos de “engolir” o teatro, determinar a paisagem urbana e a dinâmica imobiliária no Bixiga.
Mas a disputa não é isolada: os bairros do centro paulistano expandido apresentam centenas de casos semelhantes, estudados por urbanistas como Felipe Francisco de Souza e grupos como o Coletivo Política do Impossível.
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A segunda maior cidade do país também sofre com o problema da gentrificação, e não é de hoje. A reforma higienista realizada há mais de um século formatou a capital fluminense a partir de uma tendência que ainda se repete.
Para ampliar as vias e implementar praças no Rio, houve um custo humano. Os cortiços foram fechados, e a população despejada para o que viriam a se consolidar como as favelas atuais.
Atualmente, a região portuária está entre as regiões mais gentrificadas. Grandes espaços restam vazios, com barracões abandonados, enquanto centenas de milhares de pessoas se acumulam em espaços mínimos nos morros cariocas — questão que se tornou ainda mais dramática durante a pandemia, que exigiu um isolamento impossível nas condições da geografia dessas comunidades.
A “revitalização” da região portuária do Rio — agora, conhecida como Porto Maravilha — aconteceu sob forte pressão de dois eventos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
As críticas feitas a esse processo não são pelo investimento, exatamente, mas por se tratar de um fenômeno que afasta as pessoas pobres e “higieniza” os locais, agravando a desigualdade social e acendendo um alerta sobre o racismo.
O problema é sensível também porque hoje já ocorre um processo chamado de gentrificação periférica, ou seja, mesmo as favelas vivem esse problema, tornando a resolução cada vez mais complexa.
Brasília foi erguida nos anos 1950 pelos candangos, nome dado aos primeiros habitantes da capital brasileira. Vindos sobretudo do Nordeste, os trabalhadores da construção civil construíram uma cidade modernista, com enormes vias para carros, e se acomodaram nas cidades-satélites, que não recebiam a mesma preocupação de infraestrutura.
Hoje, pesquisadores como William Lauriano estudam o impacto de mais de 60 anos de relações urbanas desiguais e gentrificadas. Elas afetam a experiência de ser e estar no espaço urbano, assim como apresentam desafios estruturais a uma das cidades mais centrais para o funcionamento político do País.
O caso de Brasília, uma cidade com espaço abundante, é paradigmático: não falta solo, mas sobram relações de propriedade que continuam afastando a população mais pobre da região mais central.
Também nesse caso, a arte documenta a realidade e ajuda a entender a complexidade do problema urbano, que ganha repercussões graves para a mobilidade, a moradia e os outros eixos dos direitos sociais.
Fontes: Raquel Rolnik, ArchDaily, Observatório das Metrópoles, Tudo Geo, USP