Como políticas urbanas podem alimentar o racismo estrutural?

13 de outubro de 2020 6 mins. de leitura

Pensar em alternativas de trânsito que considerem a desigualdade racial é fundamental para a superação dessa lacuna histórica

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As políticas urbanas, incluindo aquelas relativas à mobilidade, contemplam um campo de tomada de decisão tanto técnico quanto político. Por isso, é comum que determinados modais sejam analisados do ponto de vista de sua eficiência e também de sua efetividade social. Mais que possuírem bons indicadores, eles precisam responder a demandas concretas da sociedade.

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Isso implica em considerar que o corpo social é marcado por uma série de contradições e desigualdades econômicas, políticas, raciais e de gênero, que devem ser estudadas a fundo na implementação de políticas de mobilidade. 

A política de isenção tarifária a pessoas de baixa renda está entre as estratégias mais comuns elaboradas nesse sentido, mas há outras. Um exemplo é a plataforma Nina, que acolhe, estrutura e encaminha informações sobre assédio sexual nos ônibus da cidade de Fortaleza, no Ceará.

Momento Mobilidade discute desigualdade socioespacial

E quanto à discriminação racial? Quais são as formas mais eficazes de enfrentá-la na hora de formular as políticas de mobilidade? Para alguns especialistas, o desafio passa por não encarar o espaço urbano como um cenário neutro.

Política

Concentrar a estrutura cicloviária nos bairros centrais acaba determinando politicamente o uso do modal
Concentrar a estrutura cicloviária nos bairros centrais acaba determinando politicamente o uso do modal. (Fonte: Shutterstock)

Há 40 anos, o acadêmico estadunidense Langdon Winner postulou que os artefatos não são neutros. Em vez disso, têm implicações políticas importantes. O autor dá um exemplo próprio da mobilidade urbana para ilustrar essa assertiva: os viadutos da região de Long Island, em Nova York, que eram extremamente baixos.

Para o autor, o motivo provinha de uma opção deliberada do empreiteiro Robert Moses, que os teria reduzido para evitar a passagem de ônibus. “As razões refletem os preconceitos raciais e de classe social de Moses. […] Pessoas pobres e pretas, que normalmente usam o transporte público, seriam mantidas fora das vias porque os ônibus de doze pés de altura não podiam passar sob os viadutos”, Winner afirmou.

Daí o porquê de asfaltar o centro, e não a periferia, ou ter ônibus novos na região central, e não nos bairros pobres. Isso revela uma ideia de cidade que naturaliza a desigualdade no acesso a ela, afetando prioritariamente pessoas negras, que estão à margem nas cidades.

Racismo?

O racismo pode se revelar na limitação do acesso à cidade por pessoas negras, que têm jornadas maiores e menos opções de deslocamento
O racismo pode se revelar na limitação do acesso à cidade por pessoas negras, que têm jornadas maiores e menos opções de deslocamento. (Fonte: Shutterstock)

A primeira dificuldade em levar em conta o fenômeno racial nas políticas urbanas no país se refere a um tabu presente na sociedade brasileira, que, não raro, nega ou secundariza os efeitos do racismo. 

O Movimento Negro Unificado (MNU), que organiza a população negra no país desde 1978, entende que o Brasil também possui uma espécie de apartheid, mesmo que essa não seja a narrativa predominante. 

Segundo a organização, embora o país seja marcado por um histórico de violências estruturais com as pessoas negras, o assunto é muitas vezes tratado como algo que ficou no passado e não produz mais tantos efeitos atualmente.

O que é e como combater a desigualdade socioespacial

O MNU argumenta que, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, não houve no Brasil qualquer tipo de reparação a esse segmento da população, que foi escravizado e é frequentemente subconsiderado nas formulações públicas. Essa postura “joga para baixo do tapete” a questão da discriminação racial e dificulta o reconhecimento desse entrave.

Segundo o movimento, esse contexto traz um problema com duas dimensões: uma objetiva e outra simbólica. Objetivamente, há elementos que fazem com que o racismo esteja presente na arquitetura social. O êxodo rural ocorrido após o fim da escravidão e as políticas higienistas dos grandes centros desse período foram as principais razões para a concentração da população negra na periferia das cidades brasileiras.

Dessa forma, há elementos subjetivos que marcam essa ausência de reconhecimento histórico, a exemplo da abordagem da democracia racial. Segundo essa narrativa, o Brasil teria sido formado de forma amistosa entre as diferentes raças, que contribuíram para o desenvolvimento harmônico de uma nova cultura. De acordo com essa visão, os efeitos do racismo do País seriam menores do que se verifica em outros locais do mundo.

Para o MNU, a romantização dos conflitos oriundos da questão racial no Brasil recupera um histórico de desrespeito às demandas das pessoas negras e dificulta a visibilidade dessa agenda na sociedade.

Intersecção

As principais deficiências na estrutura urbana de mobilidade são sentidas por quem vive na periferia, onde as pessoas negras residem majoritariamente
As principais deficiências na estrutura urbana de mobilidade são sentidas por quem vive na periferia, onde as pessoas negras residem majoritariamente. (Fonte: Shutterstock)

Outro elemento que pode dificultar o reconhecimento dos problemas raciais e o atendimento dessas demandas por políticas específicas de mobilidade urbana é o fato de que as desigualdades raciais convivem com outras formas de desigualdade, como a econômica. 

Por isso, olhar para a demanda das periferias é um bom caminho no sentido de iniciar uma aproximação com as demandas da população negra. Um exemplo são as ciclovias, que ainda estão concentradas na região central das principais cidades brasileiras. Como as pessoas negras costumam estar nos bairros mais afastados, acabam sofrendo diretamente esse impacto.

Pandemia denuncia fragilidades na estrutura das cidades

Outro elemento da agenda do movimento negro pelo acesso à cidade é o fim da violência policial. As pessoas negras costumam ser vistas como um risco em potencial enquanto circulam pelas cidades, o que gera um ciclo de reprodução do racismo estrutural. Isso significa que a estrutura das cidades deixa de considerar as pessoas negras, e o efeito disso não é corrigido por políticas atentas às desigualdades sociais.

Fonte: NECSO/UFRJ, Observatório da Bicicleta, MNU. 

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