SP: o que mudou desde a aprovação do Estatuto do Pedestre?

14 de janeiro de 2021 9 mins. de leitura

Em mais uma matéria de retrospectiva de 2020, o Estadão Summit Mobilidade convida a Cidadeapé para avaliação da política municipal

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Com cerca de 12 milhões de habitantes, a maior cidade do Brasil tem desafios urbanos à altura. Diante deles, tem-se falado a respeito dos corredores de ônibus, da malha metroviária, das ciclovias e da política de controle de tráfego nas marginais, mas nem sempre se dá a devida atenção à mobilidade a pé.

Embora presente nos Planos Diretores da Cidade e nos Planos Municipais de Mobilidade Urbana, esse eixo acaba ficando esquecido diante da extensão das grandes cidades. Pensando nisso, São Paulo aprovou em 2017 o Estatuto do Pedestre, que cria uma política específica para quem opta por essa forma de acessar a cidade.

A proposta foi regulamentada em 2020, mas o que ela mudou no dia a dia de quem caminha?

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Para avaliar esses impactos, o Estadão Summit Mobilidade conversou com representantes da ONG paulistana Cidadeapé, que em respostas desenvolvidas coletivamente sintetizou o posicionamento da organização. O cenário, segundo a entidade, está longe de ser animador: lentidão na implementação das medidas e falta de clareza sobre a fonte de recursos são apenas alguns dos entraves identificados.

Quais são os principais pontos positivos do Estatuto do Pedestre?

Estrutura urbana ainda privilegia o trânsito de carros em detrimento da circulação de pessoas. (Fonte: Shutterstock)
Estrutura urbana ainda privilegia o trânsito de carros em detrimento da circulação de pessoas. (Fonte: Shutterstock)

A lei foi elaborada com a colaboração da sociedade civil para a garantia dos direitos de quem caminha. Um dos pontos mais importantes do Estatuto do Pedestre é que ele reúne leis já existentes e se configura em uma espécie de “Constituição sobre andar a pé”, apontando várias opções de melhoria da caminhabilidade, como formas de financiamento, discussão sobre custos e responsabilidades por calçadas e informações e bancos de dados necessários para suportar as ações.

Um exemplo de conquista a ser valorizada diz respeito às travessias de pedestre, que com o Estatuto poderão ter seu dimensionamento de tempo revisitado, contemplando idosos, crianças e pessoas com mobilidade reduzida. O texto do decreto demarca que o poder público “deverá promover a revisão e a atualização dos parâmetros vigentes relativos à travessia de pedestres”. Atualmente, o fluxo de veículos é o principal fator determinante do tempo oferecido para atravessar uma via, e não o tempo dos pedestres.

Também são apontadas outras condições que devem ser respeitadas, como a possibilidade de todos os pedestres completarem a travessia em locais de grande fluxo, a largura da faixa proporcional a esse fluxo, um período de espera de no máximo 90 segundos e a observação do tempo que pessoas com mobilidade reduzida levam para se locomover, condição ainda não considerada na cidade. 

E os pontos negativos?

O primeiro se refere à demora: levou quase três anos para que ele fosse regulamentado. E não está nítido a partir de qual metodologia se chegou ao cálculo dos tempos de espera e de período disponível para a travessia. É muito importante que esses parâmetros estejam transparentes e disponíveis para discussão pública. Além disso, espera-se que a nova metodologia contemple os 25% da população paulistana que apresenta algum tipo de deficiência e mais de 1 milhão de pessoas com mais de 60 anos de idade na capital do Estado de São Paulo.

Outro fator importante é que, apesar da pertinência do Estatuto, ele depende do Poder Executivo para sua implantação e não estabelece punição ou fiscalização para falta de ação ou omissões.

A única mudança possível é de mentalidade e de atenção ao pedestre, mas isso parece estar distante. O Estatuto do Pedestre foi aprovado em 2017, porém a lei foi regulamentada apenas em agosto de 2020. A falta de regulamentação foi uma grave omissão que durou mais de dois anos — sem a regulamentação, é impossível garantir a execução da lei.

A prefeitura tem dado consequência política e financeira às previsões do Estatuto do Pedestre?

É necessário que as políticas municipais garantam a legislação ligada à mobilidade ativa. (Fonte: Shutterstock)
É necessário que as políticas municipais garantam a legislação ligada à mobilidade ativa. (Fonte: Shutterstock)

Infelizmente, a prioridade colocada pelo Estatuto não se reflete no orçamento público — pouco se fez sobre a segurança de pedestres. Dados do Infosiga SP indicam que 229 pedestres morreram na cidade de janeiro a outubro de 2020. Além disso, não há acesso rápido e transparente para o acompanhamento da evolução de sua implementação, dependendo basicamente de dados via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Houve também a alteração realizada em outubro de 2019 na regra que garantia parte do valor arrecadado no Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) para ações que promovessem transporte público, ciclovias e circulação de pedestres na cidade. A mudança recente permite que os 30% destinados à mobilidade podem ser usados para melhorias viárias diversas, mas teme-se que não haja destinação à caminhabilidade. 

Nesse sentido, é importante acompanhar a tramitação do PL SP+Caminhável, que prevê, entre outras providências, um plano objetivo de melhoria com autoridade focada nesse planejamento. Esse projeto de lei tem potencial para dar maior consequência às determinações do Estatuto.

Qual é a avaliação da Cidadeapé sobre a agenda da mobilidade no recente processo eleitoral de São Paulo?

Conforme a campanha Mobilidade Sustentável nas Eleições em São Paulo, o que se percebe dos planos de governo é que as candidaturas deram bastante atenção à melhoria no transporte público e à redução das desigualdades na cidade, apesar de nem todos terem propostas concretas para lidar com essas questões. 

A mobilidade a pé apareceu de maneira ainda tímida, sendo lembrada sobremaneira em propostas de qualificação de calçadas. No entanto, a violência no trânsito foi pouquíssimo abordada, inclusive por parte do prefeito reeleito, cuja gestão chegou a lançar o Plano de Segurança Viária.

Ainda assim, a perspectiva é melhor em relação às eleições de 2016, quando o candidato eleito foi um dos principais responsáveis por colocar na pauta propostas populistas e irresponsáveis, como o afrouxamento da fiscalização de infrações de trânsito.

O que esperar dos próximos anos do Governo Bruno Covas para a mobilidade ativa?

É necessário que se priorizem políticas de mobilidade na periferia, onde as desigualdades são mais marcantes. (Fonte: Shutterstock)
É necessário que se priorizem políticas de mobilidade na periferia, onde as desigualdades são mais marcantes. (Fonte: Shutterstock)

A ONG Cidadeapé espera que o mandato que se iniciará no ano que vem seja positivo para a mobilidade ativa e vai cobrar o Poder Executivo por meio das Câmaras Temáticas, do Conselho de Trânsito e das pressões diretas para que os princípios da caminhabilidade sejam aplicados com mais celeridade e importância. Especificamente em relação à dotação orçamentária, é esperado que a gestão destine parcela maior da verba de intervenções viárias para a melhoria de acessos, calçadas e segurança viária do pedestre.

Quanto à segurança no trânsito, é importante que a Prefeitura acelere as ações que propôs no Plano de Segurança Viária, testando soluções e as implantando rapidamente em grande escala na cidade inteira, mantendo ativa a fiscalização de excessos de velocidade. Nenhuma morte é aceitável no trânsito, e esse é o princípio que deve ser perseguido obsessivamente com base no Visão Zero, sistema adotado pela Prefeitura de São Paulo.

A pauta da redução da desigualdade, que surgiu com força nos debates eleitorais, deve orientar todas as ações intersecretariais da prefeitura. Grande parte das dificuldades de mobilidade nas periferias e regiões mais pobres é expressão dessa desigualdade e precisa de ações decididas.

O que ainda impede que andar seja uma opção mais viável na cidade?

A maioria dos desafios da mobilidade ativa está ligada à desigualdade na cidade. Se os problemas para os pedestres já são enormes na região central, é nas periferias que eles se manifestam com mais força.

Isso passa por falta de infraestrutura, calçadas com largura e declives inadequados, obstrução do passeio (sem degraus de entrada de carros, por exemplo), iluminação não pensada para os pedestres (que não atende satisfatoriamente a quem caminha), falta de faixas de pedestres onde necessário, tempos semafóricos que não permitem que todas as pessoas atravessem em segurança, entre outros.

Além disso, há limites que passam pela prática e pelo estímulo de um desenho viário que incentive o caminhar com foco no conforto e na segurança de pedestres, como investimentos em infraestrutura verde. Outro fator a ser analisado é que a velocidade alcançada pelos veículos na maior parte da cidade ainda é incompatível com a vida, então também é importante investir em ações de acalmamento de tráfego, que forcem motoristas e motociclistas a dirigirem com a atenção e os cuidados necessários para proteger as pessoas.

Embora os acidentes e as fatalidades ocorram em todas as cidades, a administração municipal não cria ações de prevenção, limitando-se a tímidas e localizadas campanhas, tolerando essas mortes e perdas e contradizendo os princípios do Visão Zero.

A demora na regulamentação do Estatuto é um exemplo. Há pontos, como o art. 19, que preveem adequação de entradas e de saídas de veículos em postos de combustíveis que não precisavam aguardar a regulamentação, pois o próprio Estatuto já dava o prazo de 180 dias para acontecer. Nada foi feito nesse sentido.

Não basta haver bons projetos de lei, faz-se necessário regularizá-los com celeridade. E, uma vez implementados, é preciso fazer valer o que está previsto com dotação orçamentária adequada, qualidade de execução e fiscalização.

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