Como a startup Nina fomenta uma mobilidade segura para mulheres

20 de setembro de 2020 12 mins. de leitura

Em entrevista ao Summit Mobilidade, Simony Cesar explica por que se deve fomentar uma cidade acessível a todos

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Foi vendo os desafios enfrentados pela mãe, que trabalhava como cobradora de ônibus, que a pernambucana Simony Cesar entendeu bem cedo a importância de uma mobilidade segura para as mulheres.

Anos mais tarde, seu primeiro estágio da universidade foi na garagem de uma empresa de transporte coletivo e, nesse período, a empreendedora, que também é usuária de ônibus, percebeu que as queixas de assédio sexual nos veículos não eram atendidas com uma política específica.

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Simony notou que, com frequência, mulheres perdiam oportunidades de estudo e emprego por medo de transitarem pela cidade. Ao longo da graduação, a jovem viu que muitas alunas desistiram do curso em um contexto de violência de gênero que ocorreu no câmpus.

A partir dessa vivência, ela passou a refletir sobre o direito das mulheres de terem um ir e vir mais seguro e a pensar soluções para a questão. Nesse movimento surgiu a Nina, startup que auxilia no planejamento de políticas urbanas, especialmente de mobilidade, de forma a garantir uma experiência de cidade mais igualitária.

Em entrevista para o Estadão Summit Mobilidade, a empreendedora falou um pouco de seu projeto e explicou como a perspectiva de gênero é um marcador fundamental para compreender a dinâmica da mobilidade.

Simony César
Em apenas três anos, startup criada por Simony Cesar é referência nacional em mobilidade segura para mulheres. (Fonte: Nina/Reprodução)

De que maneira a falta de segurança no transporte coletivo restringe o acesso à cidade para as mulheres?

Podemos citar problemas de acesso a trabalho e educação. Quantas mulheres deixam de fazer um curso e perdem oportunidades porque isso implicaria esperar um ônibus sozinha à noite? Que mulheres assumiriam um posto de emprego às 7h em uma região sem urbanismo adequado?

Em um teste feito na Área 2, setor do câmpus da Universidade Federal de Pernambuco que abriga cursos de Exatas, percebemos que havia poucas mulheres circulando, então identificamos um alto número de assédios relatados na região. Além de possíveis casos de machismo em aula, há uma série de exposições a situações de violência que a mulher precisa enfrentar até chegar à sala.

Auditorias tornam cidades mais seguras para mulheres

Existe uma relação direta entre violência de gênero e mobilidade de mulheres no espaço urbano, e isso ainda é pouco discutido e mensurado. Costumo dizer que, se é segura para quem está na base da pirâmide social do deslocamento, a cidade acaba sendo segura para todos. Essa é a discussão que a Nina deseja fazer.

O que é a Nina?

A Nina é uma startup que desenvolve uma tecnologia que pode ser integrada a uma série de soluções em transporte. A empresa tem dois itens principais: uma consultoria de mobilidade e gênero e um produto tecnológico. Se a companhia quiser contratar apenas a consultoria, não há problema, mas não fornecemos só a tecnologia sem o monitoramento das políticas públicas a partir da nossa expertise.

Nosso trabalho começa do zero: fazemos desde um estudo inicial até um diagnóstico da cidade quanto a estruturas de mobilidade e gênero, para saber se há ou não políticas públicas que tratam da violência sexual no transporte.

Para isso, contamos com uma equipe composta, entre outras pessoas, pela Ana Carolina Nunes, que é doutoranda em Administração Pública e Governo (FGV/SP), mestre em Políticas Públicas (UFAbc) e foi consultora do Metrô de São Paulo.

O que é feito com as informações coletadas?

Todos os ônibus de Fortaleza (CE) têm três ou quatro câmeras que auxiliam vítimas e testemunhas a denunciarem ocorrências. As imagens captadas são cruzadas com informações coletadas pelo app da prefeitura (integrado com a tecnologia da Nina), como geolocalização, data e horário. As empresas têm 72 horas para disponibilizar os registros à Polícia Civil.

Esses dados também seguem por um painel de controle acessado pelos gestores urbanos, que podem consultá-los por mapa de calor, horário de pico das denúncias e maior tipificação de crime. Isso ajuda a combater em caráter emergencial os problemas relatados e prevenir novos assédios.

Ao perceber que há mais ocorrências em um local, pode-se descobrir, por exemplo, que a iluminação pública está deficitária, fator que aumenta a exposição das mulheres ao risco de violência. Casos assim são de fácil resolução, baratos se comparados ao policiamento que poderia ser deslocado para a região e beneficiam a população.

O que indicam os dados sobre violência sexual no transporte obtidos pela tecnologia da empresa?

A Nina começou a operar em março de 2019 com um piloto em Fortaleza. No fim do ano, foi fechada a contratação por mais um ano, e estamos focando essa cidade porque, em meio à quarentena, nosso plano é reposicionar a Nina e torná-la uma grande provedora de dados em relação a mobilidade e gênero na elaboração de políticas públicas de planejamento urbano.

Como estamos integrados ao aplicativo da prefeitura da capital cearense, conseguimos acompanhar uma série de informações importantes para esse mapeamento. O primeiro fator a chamar nossa atenção foi que houve uma tendência de crescimento do app da prefeitura após a integração com a Nina, e o número de downloads chegou a quadruplicar, o que mostra que os usuários do transporte coletivo estão preocupados com essa dimensão.

Mulheres na pesquisa científica e o desafio da mobilidade urbana

Não à toa, os primeiros 12 meses de atividade trouxeram quase 2 mil denúncias de assédio sexual nos coletivos urbanos, o que significa uma média superior a cinco ocorrências por dia apenas entre os casos registrados em Fortaleza. Cerca de 10% desses fatos foram apresentados criminalmente com o apoio da nossa tecnologia, que acolhe os relatos e auxilia no levantamento de provas.

Mulheres representam cerca de dois terços do total de usuários do transporte coletivo. (Fonte: Shutterstock)

Você percebe resolutividade do Estado no que diz respeito às queixas formalizadas pela Nina e que chegam a inquéritos policiais?

Na experiência de Fortaleza, percebo um empenho em investigar as denúncias coletadas pela internet, mas é importante considerar que número de boletins de ocorrência não é sinônimo de resolutividade. Além disso, há algumas particularidades nesse tipo de violência. O protocolo para atender a uma vítima de assédio é diferente do usado para um assalto; no caso de violência de gênero, as mulheres são direcionadas à Casa da Mulher Brasileira, um equipamento social que reúne a delegacia, a Atenção Psicossocial e a Defensoria Pública e funciona ininterruptamente.

Quando a vítima chega ao serviço, é acolhida pelos profissionais responsáveis pela atenção psicossocial, e não pelos funcionários da delegacia, porque a primeira decisão, após ser escutada, é definir se a vítima deseja ou não abrir a queixa. Por isso, nós entendemos que a Nina não cumpre só um papel de segurança pública, mas sobretudo de planejamento urbano. Nosso objetivo é preventivo, e os possíveis efeitos criminais das ocorrências não são prioritários para a Nina, uma vez que o foco está em planejar a mobilidade de forma mais segura.

É possível identificar como está o assédio às mulheres na pandemia?

Há dois principais elementos envolvidos na ocorrência desses casos: superlotação e desertificação de áreas. Embora não haja superlotação nesse período, os relatos de assédio continuam proporcionais ao número de viagens.

Como a Nina se tornou uma referência nacional em mobilidade segura?

Comecei a Nina em 2017 sem recursos e busquei editais de fomento. Desde então, participei de programas de apoio a inovadores sociais. A Nina foi finalista do InoveMob 2018 (Promovido pela Toyota Mobility Foundation e WRI Brasil) e assim ganhamos o primeiro capital que permitiu iniciar nossas atividades.

Esse edital proporcionou uma parceria com a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), por meio da qual chegamos à implementação do projeto em Fortaleza e pudemos colaborar com o Programa de Combate ao Assédio Sexual no Transporte Público.

Como a china tem recuperado seu sistema de transporte?

Em paralelo, temos publicações acadêmicas, a exemplo do primeiro lugar em um concurso da Academia Brasileira de Ciências, em 2018, cujo prêmio consistiu na indicação da Nina ao BRICS Young Innovator Prize do ano. Foi ótimo representar o Brasil no evento que reconhece pesquisas e projetos desenvolvidos por jovens cientistas do Brasil, da Rússia, Índia, China e África do Sul.

Ficamos entre as dez finalistas da categoria, e pude dialogar muito com outras cientistas, especialmente russas, indianas e sul-africanas. Foi possível verificar que a insegurança das mulheres no transporte é um problema global.

Como jovem empreendedora, como você avalia o fomento à inovação no Brasil?

O Brasil vive um momento preocupante quanto a empreendedorismo, inovação, ciência e tecnologia. Os cortes nessas áreas são gravíssimos e apontam para um cenário desolador. Meus colegas britânicos e alemães falam em tom preocupado, como se o Brasil vivesse em um cenário de guerra — a imagem que o Brasil passa para fora é essa, o que é triste. Mas confio nas instituições. Acredito que isso passe rapidamente, e a gente retome as diretrizes e os investimentos em inovação e tecnologia na área de transporte e em outras.

Você acredita que a mobilidade segura para mulheres pode se tornar uma agenda em destaque nas eleições municipais deste ano?

Mobilidade é um tema prioritário para as cidades, e sua relação com a questão de gênero é tão importante quanto alarmante. Como as mulheres, que são 65% do público pagante do transporte, não têm suas demandas ouvidas? O transporte não é feito para elas.

A questão não é saber se ele deve ou não entrar na agenda, mas como e por que isso ainda não foi feito. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há um caso de assédio em veículos do transporte coletivo a cada quatro segundos. Segundo o Instituto Locomotiva, 97% das mulheres brasileiras já foram assediadas ao se deslocarem. Os números não falam, eles gritam sobre a importância de esse fenômeno ser discutido.

Como as operadoras de transporte coletivo têm se comportado diante dessa demanda?

Mais por necessidade do que por sensibilidade, em muitos casos. Ainda há uma disparidade na ocupação das vagas que tomam decisão no Estado e nessas empresas, e quase 90% dos cargos técnicos de chefia são ocupados por homens.

Mas o empresário sabe que precisa reter as mulheres para que o modelo de negócio seja minimamente viável. Para que as mulheres se desloquem com o transporte coletivo em segurança, elas devem, em primeiro lugar, permanecer como usuárias. O sistema já vinha perdendo clientes dia a dia e, com a pandemia, esse cenário deve se acentuar.

Como estruturas urbanas podem se tornar hospitais de campanha?

Além disso, trata-se de uma pauta simpática: há muita mídia espontânea em torno da Nina. Os empresários de transporte costumam estar relacionados a coisas negativas, como aumento da tarifa, e a aproximação com a Nina auxilia na promoção do bem-estar da usuária e em colar a marca nesse quadro positivo.

Mulheres ainda são sub-representadas entre gestores públicos de transporte e nos postos de chefia de empresas da área. (Fonte: Shutterstock)

Algumas cidades optam por ônibus rosa ou vagão rosa nos metrôs para dedicar espaços exclusivos às mulheres. O que você pensa dessa política?

Acredito que se trate de uma política paliativa pouco resolutiva. Além disso, abre um campo de reflexão importante: as mulheres que não estão no vagão rosa estão dando permissão para que os homens as assediem?

O que precisa ser feito é educar no aspecto de gênero e falar em feminismo e outros fenômenos que a política bolsonarista, por exemplo, chama de “mimimi”. Temos que tratar dessa violência e desses rótulos que o machismo impõe e dos limites que as políticas como os vagões rosa possuem.

Quais são os objetivos da Nina no próximo período?

A Nina estava em negociação com outras cidades, mas estamos aproveitando o período de pandemia para aprimorar o modelo do nosso negócio. Essa é uma oportunidade para deixar de apagar incêndio e planejar ações futuras que são prioritárias. No nosso radar estão Belo Horizonte (MG), Sorocaba (SP) e outras cidades paulistas. Estamos em diálogo também com Bogotá (Colômbia) e desejamos ter cases na América Latina.

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