Entenda como é estruturado o modelo de negócios do transporte público na maior parte do país e quais problemas decorrem disso
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Confira tudo o que rolou no Summit Mobilidade 2023.
Falar em crise no transporte público brasileiro não é um exagero. O setor funciona, quase que completamente, com o modelo de custeio estruturado na arrecadação tarifária, ou seja, são as passagens pagas pela população que financiam o transporte. O preço das passagens subiu, em média, sempre acima da inflação nos últimos anos. Porém, mesmo com os altos preços, o serviço não é de qualidade, seja em conforto ou em número de veículos.
Além disso, o transporte público tem perdido passageiros e competitividade em relação ao transporte por veículos individuais. Os anos da pandemia de covid-19 escancaram o problema estrutural do setor. Somente os ônibus urbanos perderam receitas de aproximadamente R$ 25,7 bilhões no período, segundo o levantamento “Transporte público por ônibus — dois anos de impactos da pandemia de covid-19” da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
Contudo, qual é a saída para financiar e qualificar o transporte público brasileiro?
O transporte público no Brasil é, na sua maioria, gerenciado de forma municipal, ou seja, são as cidades as responsáveis pelo funcionamento dos serviços. Em poucos casos, consórcios estaduais assumem a gestão de determinadas linhas ou serviços.
Segundo o estudo “Novas fontes de custeio do Transporte Público Urbano: Princípios e Potencialidades”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a maioria das cidades, porém, não cuida diretamente do transporte; em vez disso, cede a gestão dos modais e das linhas para empresas privadas através de processos licitatórios.
Baseadas nos serviços oferecidos, número de passageiros, custos de operação (funcionários, manutenção, renovação de frota) e outros, as empresas estabelecem uma tarifa técnica. A tarifa técnica é o valor referente ao que cada viagem custaria e o que cada passageiro deveria pagar. As cidades, então, utilizam fundos destinados ao transporte e subsidiam parte do serviço, com o intuito de baixar o preço para os consumidores finais. Muito dos subsídios também podem vir de verbas Estaduais ou Federais separadas para este fim; neste caso, a maior parte dos subsídios vai para as regiões metropolitanas.
Este modelo de financiamento gera muitos problemas, principalmente pela a falta de transparência nos processos licitatórios e na divulgação de dados de custo e de operações. Além disso, subverte-se a lógica do transporte que deveria ser público: em vez de servir para transportar quem precisa, ele passa a ter o objetivo de gerar lucros.
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O fato do transporte coletivo ser gerido por empresas privadas não é em si um problema; porém, na maioria das cidades, o modelo demonstra sinais de esgotamento e de mau investimento de recursos públicos. O estudo “Mobilidade Urbana no Brasil: marco institucional e propostas de modernização” realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontou para as principais falhas na estruturação dos serviços no País.
De acordo com a pesquisa, o Brasil precisaria investir R$ 295 bilhões até 2042, na estrutura de transporte público das 15 principais regiões metropolitanas para que o serviço fosse de qualidade. A meta de comparação foi com as cidades de Santiago do Chile e Cidade do México, consideradas como as que detêm o melhor transporte público da América Latina.
Segundo o estudo, o principal gargalo do transporte público brasileiro é a falta de opções de modais. De todo o dinheiro que deveria ser investido, a maioria deveria ser destinado à criação e expansão de metrôs e linhas férreas urbanas. No quesito dos ônibus, que dominam o transporte público brasileiro, a indicação é abertura de faixas ou corredores exclusivos para o transporte público (no molde dos BRT’s), a fim de privilegiar a fluidez do transporte coletivo sobre o individual.
Durante o Summit Mobilidade 2023, o engenheiro e ex-secretário municipal de transportes na prefeitura de Luiza Erundina em São Paulo, Lúcio Gregori, participou de um painel de debate sobre o financiamento do transporte público. Conhecido ativista pela causa da Tarifa Zero, Gregori trouxe um dado interessante para a reflexão. Segundo ele, nas cidades que adotaram a gratuidade no transporte o número de veículos particulares não diminuiu e, mesmo assim, o número de usuários do transporte coletivo cresceu em exponencial.
Este dado demonstra que o modo de financiamento do transporte é altamente excludente, ou seja, as parcelas mais pobres da população são as que mais precisam e são as mais afetadas pelos preços.
No trabalho “Novas fontes de custeio do Transporte Público Urbano: Princípios e Potencialidades”, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho e Vander Mendes Lucas debatem as possibilidades para um financiamento mais justo. Os autores citam modelos de cidades europeias onde o subsídio é pensado de forma holística e progressiva. Basicamente, quem pode pagar mais paga mais. Além disso, outros serviços que são mais danosos às cidades (como carros à combustão) sofrem taxação maior para financiar a rede de mobilidade pública. Ao longo do tempo, com leis federais, o transporte público deve ganhar maior sustentabilidade e qualidade.
A lógica é que todos se beneficiem do transporte público, mesmo que não o utilizem. Donos de empresas, por exemplo, dependem de que seus funcionários cheguem ao trabalho no transporte. Donos de veículos próprios são beneficiados com a estrutura das cidades, que é financiada publicamente, e assim, nada é mais justo do que todos pagarem pelo serviço.
Outro modo de financiamento debatido há tempo é o IPTU progressivo. O IPTU é um dos impostos que financia as cidades e serve para subsidiar o transporte; no entanto, ele é um dos impostos mais sonegados. Além disso, é um imposto sujeito à grande variação, com muitas propriedades de luxo ou de áreas nobres pagando muito pouco. Ativistas da Tarifa Zero e especialistas em mobilidade veem nele uma das formas de equalizar a divisão do financiamento do transporte coletivo.
Mudar a forma de financiar a mobilidade urbana é uma saída para garantir que a cidade possa ser acessada por todos os seus moradores. Além disso, com o correto direcionamento estatal, os investimentos públicos e privados podem ser direcionados a setores que garantirão a sustentabilidade das cidades. Nesse quesito, pode-se pensar a renovação de frotas por veículos elétricos, a qualificação da estrutura urbana para a caminhabilidade, e a circulação ativa e a criação de novos modais. Dessa forma há mais possibilidades para o deslocamento sem que haja lotação no transporte público, nem engarrafamentos.
Fontes: Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, EBC, Confederação Nacional da Indústria, Caos Planejado, IPEA, Mobilize