Entenda o que é segregação residencial e como é difícil combater o problema
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Na primeira semana de outubro de 2022, um novo caso de racismo estrutural ganhou o noticiário: o advogado Alexandre Marcondes foi abordado de forma agressiva por um policial, que lhe apontou a arma para o rosto. Marcondes não reagiu e, após a revista, mostrou ao policial a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), então o tom da abordagem mudou e o policial disse que teria agido daquela forma porque o advogado apresentava “uma atitude suspeita”.
A única atitude do advogado foi ter saído de casa em um domingo de manhã e se dirigido à padaria. Marcondes é negro e mora em um bairro de classe média-alta de São Paulo (SP), aparentemente essa foi a situação que o policial julgou suspeita. O caso está sendo investigado pela corregedoria da Polícia Militar e pela OAB.
O fato de algumas partes das cidades terem uma população majoritária de certa cor ou classe social não é um detalhe. A segregação residencial é um fato sociológico relevante em todo o mundo e, no Brasil, o passado escravista ainda influencia diretamente esse fenômeno.
Conceitualmente, a segregação residencial é o processo pelo qual determinados grupos sociais se separam de outros, evitando o convívio e até as interações. O mero distanciamento físico desses grupos não inviabiliza, necessariamente, o convívio, mas diminui grandemente as chances de contato e de interações sociais.
Outra característica da segregação é que ela não é só expressão da desigualdade, mas também é produtora dela. Isso ocorre porque a exclusão e a dificuldade em acessar determinados espaços, como trabalho, estudo e cultura, gera maior dificuldade de ascensão social.
A história da ocupação de espaços no Brasil sempre foi marcada por conflitos. Quando a família real chegou ao País, muitas das melhores casas foram repassadas para a realeza e súditos importantes. Com isso, a população mais vulnerável ficou sujeita a sempre buscar alternativas em espaços sem infraestrutura, e é desses primeiros movimentos que se remonta, por exemplo, a criação de cortiços.
Com o fim da escravidão, sem uma política de absorção e integração da população negra às cidades e com o início da urbanização, começaram a surgir as favelas. O termo, segundo o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), é utilizado para designar áreas das cidades com moradias precárias, sem infraestrutura e com insegurança.
Sabemos que essa definição não dá conta de explicar toda a vida e as experiências sociais que acontecem na favela, mas é fato que a falta da garantia de direitos básicos a esses cidadãos criam uma série de problemas sociais.
Ao longo do século 20, a maioria das políticas habitacionais do Brasil se limitou a uma lógica higienista, desmontando favelas e cortiços dos centros das cidades e de outras áreas de interesses. Isso levou a população de renda mais baixa a ser cada vez mais afastada para as periferias.
Outras políticas também afastaram a população pobre de áreas nobres, como a criação de condomínios — que normalmente ficam distantes dos centros e das oportunidades de trabalho — destinados à venda para classes mais pobres por meio de financiamento.
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Nota-se a prática conjunta do Estado e das classes dominantes nas estratégias de ocupação dos espaços das cidades. Agentes que enriqueceram com a especulação imobiliária sempre estiveram próximo da classe política e, para os pobres, restou procurar abrigo onde quer que esse se oferecesse.
A crise das moradias no Brasil piorou entre as décadas de 1940 e 1980, quando, em razão do êxodo rural, a população que vivia em grandes cidades passou de 31% para 67%. A maioria desse contingente populacional fez crescer favelas, ocupações irregulares, periferias e cidades de regiões metropolitanas.
A necessidade de morar longe para “poder morar” cria efeitos muito nocivos nas pessoas. É normal que trabalhadores brasileiros gastem entre 2 horas e 4 horas diárias em deslocamentos, em meios de transporte precarizados, para chegar ao trabalho ou ao local de estudo. O fenômeno é tão comum que foi denominado “movimento pendular”, uma vez que grandes fluxos de trabalhadores se deslocam em um sentido e voltam no fim do dia.
Áreas de cultura e de lazer, universidades, complexos empresariais e industriais também ficam distantes das residências da periferia, o que dificulta o acesso dessas pessoas a várias oportunidades.
Assim, grandes contingentes populacionais lutam sem paridade “de armas” pelas mesmas oportunidades com outras pessoas que têm o privilégio de poder gastar seu tempo de forma mais proveitosa.
A segregação residencial continua tendo cor no Brasil, o que é uma amostra de que o atraso na adoção de políticas públicas que reparassem os horrores da escravidão ainda tem efeito. Segundo um levantamento do Nexo Jornal e do Atlas da Segregação Racial em Metrópoles Brasileiras, a maioria das metrópoles do País tem maior índice de pessoas negras vivendo nas zonas periféricas. Segundo esse estudo, as cidades mais segregadas são São Paulo, Salvador, Campinas, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba, Recife e Fortaleza.
Durante a maior parte da história do Brasil, a segregação residencial teve um sentido: concentrar populações mais ricas nos centros e afastar os pobres para a periferia. Porém, na década de 1990, um novo fenômeno começou a ser notado, grupos de classes sociais mais altas criaram condomínios fechados e comunidades em locais mais afastados para fugir dos “problemas” das grandes cidades.
Entretanto, os ricos não vão para a periferia nas mesmas condições do que os pobres. O Estado garante a qualidade da infraestrutura urbana para tal e o acesso desses condomínios até os principais pontos da cidade costumam ser bem cuidados, além disso saneamento, eletricidade e outras necessidades básicas não faltam.
Esses condomínios são uma forma de acentuar a segregação por meio de barreiras físicas, monitoramento e segurança (majoritariamente privadas), excluindo os indesejados do convívio.
As professoras Luciana Andrade e Jupira de Mendonça conceituam, em um artigo para o Diplomatique, o movimento de hipercidadania. Neste, quem pode pagar por esses direitos se torna um hipercidadão, com acesso à educação, à saúde, ao lazer, ao estudo e ao trabalho sem ter que conviver com outras classes sociais.
Nesse sentido, podemos pensar o movimento do fim dos carros populares como mais um fator que acentua as segregações residencial e espacial. À medida que as montadoras passam a focar estratégias de vender menos veículos mais caros, com maior margem de lucro, a maior parte da população perde a capacidade de comprar carros novos. Isso encarece os veículos usados e toda a cadeia de manutenção.
Dessa forma, com o tempo, ter e manter um carro será privilégio de classes cada vez mais ricas que necessitam da capacidade de se mover pela cidade com mais conforto e velocidade.
Como vimos, a segregação residencial é causa de desigualdades sociais, mas também é causadora do fenômeno. Não existe uma solução mágica nem uma forma fácil de combater o problema.
As cidades já atingem níveis gigantes de ocupação, e as desigualdades e a segregação residencial são arraigadas na forma do desenvolvimento capitalista. Algumas ferramentas são medidas que podem mitigar os efeitos da segregação residencial, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo, que impede o avanço da especulação imobiliária predatória; leis que garantem a função social das propriedades e as fachadas ativas em determinadas zonas; e a concessão de IPTU e aluguel social.
Porém, para serem efetivas, é preciso que o Estado e a iniciativa privada entendam que uma cidade com melhor mobilidade urbana para todos só cria vantagens à medida que gera mais segurança e melhora os índices de desenvolvimento humano.
Fonte: Mundo Educação, Diplomatique, Brasil Escola, Estadão